Marcos Sá Corrêa*
Antes de pôr os pés no Rio de Janeiro, propriamente dito, a cabeça estava em casa. A bordo do táxi, saindo do aeroporto, uma voz feminina repetia sem parar o chamado da central de atendimento, pedindo um carro para pegar um passageiro “na comunidade do Borel”. Sem resposta. Apesar do eufemismo, que desfila nos dicionários na ala das palavras “concordância” e “harmonia”, faltava um motorista, na manhã ensolarada, para subir a favela, numa hora em que o carioca deu para chamar de comunidade o que parece anti-social. E a moça insistiu, em vão, até o fim da corrida.
Na outra ponta da viagem, ficara a lembrança de outro modelo de comunidade, o da Conservancy, que cuida do Central Park para o Departamento de Parques e Recreação da prefeitura de Nova York. Ela também é o resultado de uma reação espontânea à falência da administração pública.
Surgiu nos anos 1970, quando os jardins viraram terra batida, os monumentos se escondiam atrás de pichações e era difícil passar por baixo das pontes sem ouvir, com sorte, pelo menos uma oferta de maconha. Nos bosques e lagos ao norte da Rua 103, recomendava-se nem pisar. E áreas inteiras do parque corriam o risco de ser privatizadas por adolescentes que, onde bem entendiam, demarcavam seus campos comunitários de beisebol.
INICIATIVA
Foi quando a Conservancy resolveu, literalmente, botar as mãos naquela mixórdia. Hoje, dois terços do orçamento que mantém o Central Park vêm dos US$ 20 milhões que a turma arrecada anualmente, passando o chapéu entre famílias endinheiradas, empresas, fundações “e usuários como você!”, como proclamam as placas que a entidade espalhou nas alamedas.As taxas de adesão começam em US$ 35 por ano e ajudam a manter os 250 funcionários e 3 mil voluntários que trabalham nessa restauração sem fim.
Desde 1980, a Conservancy investiu nesse programa US$ 350 milhões. Mas não entra só dinheiro nessa equação. Vieram junto pessoas que, de ancinho na mão, varrem folhas secas na relva com cara de quem poderia supervisionar o serviço do alto de suas coberturas na 5ª Avenida. Os banheiros públicos, além de sabonete e papel higiênico, têm agora quadros na parede. O domingo enche de turistas também o Charles Dana Discovery Center, no Harlem Meer.Nada está fora do alcance, desde que os índices de violência caíram no Central Park a menos de um décimo do que eram 20 anos atrás.
O que não seria nada demais, se o jornalista Adam Gopnik, espantado com a calma de Nova York, não escrevesse em um livro recente que ela se tornou “uma cidade de carrinhos de bebê” e se os esquilos do parque também não tivessem perdido ultimamente o hábito de abordar visitantes, mendigando comida.
Esse, sim, deve ser sinal dos tempos. Como os 25 milhões de seres humanos que percorrem o parque todo ano, os bichos dão a impressão de que se espalham cada vez melhor naqueles 3,4 quilômetros quadrados, por sinal um território menor que o do bairro de Copacabana.
Ali já se registrou a presença de 275 espécies de aves, até mesmo papagaios sul-americanos, que se aclimataram ao frio de Manhattan.Riqueza de fauna costuma ser um privilégio da vida nos trópicos. Mas, no Central Park, pelo menos, qualquer um pode se apresentar no Henry Luce Observatory, aquela imitação de castelo em frente ao Museu de História Natural, pegar emprestada uma mochila com binóculo, caderno de anotações e guia de campo, e engrossar instantaneamente uma das comunidades que mais proliferam atualmente nos Estados Unidos - a dos observadores de aves, porque nem sempre comunidade é sinônimo de favela.
* É jornalista e editor do site O Eco (http://www.oeco.com.br/)
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