Ótimo artigo de Estáquio Gomes (do Jornal O Estado de São Paulo de 14/01/2008)
A República, a doença e a cidade fantasma
Eustáquio Gomes*
*É jornalista e autor de ‘A febre amorosa’ e ‘Viagem ao centro do dia’, entre outros livros.
O ano de 1889 foi duplamente crucial para Campinas, já então o principal núcleo urbano do interior paulista. Era o ano da República. E os republicanos eram numerosos na cidade. Depois, no auge da comoção política, estava desidratada e enfraquecida demais para tirar proveito disso: uma epidemia de febre amarela tinha varrido suas ruas, reduzindo a população de 35 mil para pouco mais de 3 mil habitantes.
Não que tenha havido tantas mortes: quem pôde fugir, fugiu. Só ficaram mesmo os muito pobres, os obstinados e os que tinham o dever de ficar. Fugia-se em tílburis, charretes, carros de boi e pela bitola estreita da Mogiana e da Paulista, as vias férreas que irrigavam a economia local, dominada à época pelos barões do café, como antes o fora pelos barões do açúcar.
Era uma cidade onde se lia Zola no original e que, em certa época, chegaria a ter 800 pianos. Circulavam dois jornais diários, já se falava ao telefone e, nos ginásios da cidade, brilhavam professores como Francisco Rangel Pestana e Américo Brasiliense. No Clube Republicano, pontificavam nomes como Francisco Glicério, Francisco Quirino dos Santos e o futuro presidente Campos Sales. O Teatro São Carlos ainda guardava o cheiro de Sarah Bernhardt, que ali se apresentara três anos antes. Havia dois anos, o imperador estivera na cidade para inaugurar a Estação Agronômica, o hoje mais que centenário Instituto Agronômico de Campinas. Vicejavam no ar vagas idéias separatistas e vivia na cidade Alberto Sales, autor de um libelo que defendia a idéia de uma “pátria paulista” tão viável quanto a Dinamarca, a Suíça e a Grécia. Nesse projeto, caberia a Campinas o papel de uma Zurique temperada. A febre pôs abaixo tais projetos e retardou o passo da cidade e dos ocupantes de seus ricos palacetes. Curiosamente, a primeira vítima fatal foi uma professora suíça, Rosa Beck, que chegara com planos de lecionar. Quando desfaleceu o pianista Caetano Viggo, talento campineiro, em pleno Teatro São Carlos, a epidemia já estava instalada. Campinas tornou-se uma cidade fantasma. Nas noites escuras, as esquinas eram clareadas por barricas de alcatrão a que se ateava fogo, pois acreditava-se afastar assim os miasmas de uma epidemia cujas causas eram desconhecidas. Oswaldo Cruz ainda estava em cueiros.
Ao cabo de dois meses, tinham morrido cerca de mil pessoas. Às vezes, as carroças do assustador ‘Desinfectório Central’ eram usadas para recolher cadáveres. Em outras, transportavam os doentes. Foi preciso uma campanha dos jornais da Côrte para que o imperador acordasse de seu sono e enviasse uma comissão sanitária (há uma praça em Campinas chamada Imprensa Fluminense, em homenagem a esses “publicistas”). Lá, um dia, alguém teve a idéia luminosa de que, desconhecendo-se o vetor, talvez se devesse eliminar as poças d’água que coalhavam as ruas.
Deu certo. A febre retrocedeu. Não por acaso, desde então, o saneamento básico é prioridade em todos os programas de governo para a prefeitura da cidade. Ainda que depois pouco se cumpra, nenhum candidato deixa de pagar tributo retórico à lição do passado.
Campinas, hoje, soma 1 milhão e 200 mil habitantes. É um notável centro econômico, tecnológico e científico. O principal elemento de seu brasão de armas é a figura de uma Fênix, a ave mítica que renasce das próprias cinzas.
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