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segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O trenzinho caipira da Júlio Prestes

Do O Estado de São Paulo - edição de 03/08/2009

O trenzinho caipira da Júlio Prestes

José de Souza Martins

Na contraluz do vitral, a fumaça da locomotiva a vapor se dissolve entre o verde das plantações, os muitos tons de terra dos montes adiante e o céu azul. Tudo ali no antigo saguão da Estação Júlio Prestes. O sinal baixado dá passagem ao trem de carga. Na linha paralela, uma composição de passageiros se perde em direção ao interior, no mesmo rumo dos fios do telégrafo. Aquele vitral é uma viagem. Cristalizou nos vidros multicores um tempo que de muitos modos permaneceu na memória dos paulistas. O passado foi ficando ali, filtrado pela luz externa, enquanto a cidade se transformava, os passageiros partiam e não voltavam, o trem desaparecia e o sonho acabava. Obra do engenheiro Cristiano Stockler das Neves, a estação fora inaugurada em 1938. A Sorocabana teve três sucessivas estações terminais na cidade de São Paulo. A mais antiga, pequena, perto da Estação da Luz. Foi demolida há alguns anos. No lugar há um barracão. Depois, outra bem maior, onde é hoje a Estação Pinacoteca, depois de ter sido o Dops. E, finalmente, o monumental edifício da Júlio Prestes, hoje abrigando a Sala São Paulo e a Secretaria da Cultura. As plataformas ainda recebem os trens do subúrbio.

Houve tempo em que dali saía o trem internacional, que ia até Montevidéu. Fazendo-se baldeação no Rio Grande do Sul, chegava-se a Buenos Aires. Havia trens entre São Paulo e a capital argentina três vezes por semana. Fiz um trecho dessa viagem quando a longa ligação ferroviária já estava mutilada, os carros e locomotivas já velhos, obsoletos e vagarosos trafegavam quase vazios. O trecho em que a ferrovia acompanhava o Rio do Peixe, em Santa Catarina, atravessava uma das nossas mais belas paisagens. Corria, também, através da terra mítica que foi cenário da Guerra do Contestado, na insurgência messiânica dos pobres da terra, de 1912 a 1916. Ao longo do caminho ainda havia sinais daquele tempo, cemitérios abandonados de vítimas da guerra que se via da janela do trem, estações que foram ficando, incrustadas no passado. Nomes poéticos que foram se perdendo: a estação de São João dos Pobres passou a chamar-se Matos Costa, em memória de oficial do Exército morto no conflito.

Da Júlio Prestes saía também o trem que ia a Bauru, onde se fazia baldeação para a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Atravessava-se o Pantanal mato-grossense no começo da noite, a lua brilhando sobre a água que se disfarçava sob o capim e as plantas. Ia até Corumbá, às margens do Rio Paraguai. Ali se fazia baldeação para a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, que ia até Santa Cruz de la Sierra. Só esse trecho de uns 600 km tomou uma semana inteira na viagem que fiz à Bolívia, em janeiro de 1958.

A Sorocabana foi a única ferrovia paulista que não nasceu do café. Nasceu do algodão, em Sorocaba.

Um comentário:

paulo guerra disse...

maravilha de postagem, abraço!