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segunda-feira, 4 de junho de 2007

No tempo em que Itatiaia era velho

Reproduzo a seguir mais um bom artigo do jornalista Marcos Sá Corrêa, editor do site O Eco, publicado no Estadão de 30/05/07.

É um artigo especial sobre o mais antigo Parque Nacional do Brasil. Talvez seja, além do mais antigo, um dos mais maltratados. Mas, apesar disso, continua sendo um lugar maravilhoso que vale a visita.

No tempo em que Itatiaia era velho

Marcos Sá Corrêa*

É uma pena Itatiaia não ganhar, de aniversário, um álbum como o do pianista Robert Donati. O parque nacional faz 70 anos em 14 de junho. Foi o primeiro do Brasil. Mas já encontrou lá por cima esse berlinense, que escapara da Alemanha na diáspora da 1ª Guerra Mundial, morara em Amsterdã, Londres, Buenos Aires e Rio, subira a serra em 1928 para uma temporada de férias em pensão modesta e abrira em 1931 o hotel que fincou para sempre raízes na Mantiqueira.Dali para a frente, até morrer sem arredar o pé dali há quase 40 anos, ele fez parte da montanha, como as árvores exóticas que a mata foi engolindo, sem extirpar. Sua presença marcou as memórias de forasteiros como os botânicos americanos Racine e Mulford Foster, que se espantaram, na década de 1940, ao encontrar naqueles cafundós um hoteleiro trajando “calções alpinos” e “chapéu tropical”, saudando-os “num inglês sem o menor sotaque”, porque “era capaz de manter conversa em quatro ou cinco línguas diferentes ao mesmo tempo”.Em 1932, ele figurara nas cartas que o hóspede Vinicius de Moraes mandava à família, falando do “alemão cosmopolita”, “apreciador da música” e “dono de uma discoteca que é uma maravilha”, depois de ouvir “Wagner, Bach, Haendel, Chopin, Korsakoff” na vitrola que Donati ligava uma hora por dia, à custa de um gerador movido a água de córrego. “A música tem aqui neste silêncio uma significação que não pode ter aí na cidade”, escreveu Vinicius. Com ela e os “sabiás discutindo perto”, dava “vontade de fazer uma poesia que preste”.Quem não escreveu sobre Donati, pintou-o, como Alberto da Veiga Guignard, que nasceu em Nova Friburgo, na serra fluminense, morreu nas montanhas de Belo Horizonte e, enquanto viveu em Itatiaia, como convidado de Donati, bateu suas encostas com fôlego de andarilho. Trinta e tantos anos atrás, o hotel ainda era decorado com flores e cenários da região, assinados por Guignard.Seus óleos serviam como atestados de que, num parque nacional, o tempo pode andar para trás. Itatiaia estava marcada, na época de Guignard, por cicatrizes recentes de seu passado agrícola. Eram recordações da Fazenda Mont-Serrat, que o governo comprara em 1908 do comendador Henrique Irineu Evangelista de Souza. O parque nasceu velho. A mata, de lá para cá, remoçou-o a ponto de torná-lo irreconhecível.Donati, por exemplo, construiu seu hotel num pasto limpo. O governo, seis anos depois, ergueu o museu regional da fauna e da flora, desenhado pelo arquiteto Alberto Murgel no Estado Novo para ser modelo de prédio público em unidades de conservação, num ninho de plantas rasteiras, entre morros encrespados pelo samambaião agreste, onde se contavam nos dedos as árvores tentando retomar os terrenos roçados. As trilhas se percorriam a cavalo. A ponte do Maromba, ancorada entre duas rochas, ficava na sombra rala de dois arbustos.Tudo isso o mato recuperou. Os botânicos que estiveram ali na virada do século 20 disseram que a floresta nativa começava para lá dos mil metros de altitude, onde o machado e o fogo não haviam chegado. No século 21, apesar dos pesares, a capoeira maciça, que só os olhos clínicos distinguem à primeira vista da mata primitiva, desce rumo ao Vale do Paraíba.Não há maneira mais convincente de explicar para que serve um parque septuagenário do que a história de seu rejuvenescimento. E, para contá-la, nada mais direto do que uma exposição de velhas fotografias de antigos moradores, como Donati, mostrando, preto no branco, o que aconteceu lá dentro, enquanto o País se distraía com suas políticas ambientais. São fotos que viram poucas vezes a luz do dia em quatro décadas. E, como não foram convidadas para a festa, ainda não será desta vez que alguém as verá na programação oficial do aniversário.
* É jornalista e editor do site O Eco

(as fotos fui eu que tirei mesmo, no começo de maio no Parna do Itatiaia).

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